Sunday, August 27, 2006


Conto meu




[O Passarinho]

Há algum tempo havia um passarinho que vivia dentro de uma linda gaiola. E muito tempo [depois desse algum tempo] se passaria, e muita coisa lhe aconteceria, até que ele entendesse que gaiola é gaiola, linda ou não.

Mas ainda estamos no tempo em que o passarinho amava sua gaiola.

Aliás, ia além disso. O alpiste fresco, brilhoso até. A variedade de frutas maduras e apetitosas. Inúmeras daquelas pedrinhas de bicar que ele tanto apreciava. Tantas mini-banheiras para seus banhos-brincadeiras. E tudo muito grande. Tudo muito variado. Tudo espaçoso e colorido.

Parecia um sonho, é verdade. Um daqueles paraísos que todo mundo sabe como deve ser, mas, na verdade, nunca esteve em um. O passarinho pensava isso sempre: estava no paraíso. E ele se divertia incrivelmente com tudo. E vivia cada mimo, cada excesso intensamente. Era tudo um sorriso só [se é que passarinho sorri].

Até que chegou o dia [sempre chega, não é] em que o danado do passarinho resolveu olhar além.

Pois não é que além das barras [para não dizer grades, que é algo muito sério] havia mais? Depois de cruzar a gaiola inteira, depois de voar até o alto dela, depois de olhar bem os limites da linda gaiola [porque ele nunca tinha olhado realmente], o passarinho inventou de inventar algo que nunca tinha inventado antes: o que haveria além dali?

E aí, frustrado por não saber, nada da linda gaiola lhe interessava mais. E seu cuidadoso dono, talvez tão lindo como a linda gaiola, fazia tudo para o que o passarinho voltasse a ser serelepe e alegre. Para que o passarinho fosse feliz de novo dentro de sua maravilhosa gaiola.

E quanto mais o dono do passarinho lhe enchia de mimos, mais o passarinho percebia que não era ali que ele queria estar. Ou talvez até fosse, mas ele tinha que primeiro saber o que existia lá fora. Ele tinha que saber o que existia além. Era esse seu maior sonho e era isso que o passarinho queria que seu dono entendesse.

Aquela linda gaiola, aquela enorme gaiola, era minúscula diante dos sonhos do passarinho. E seu dono não percebia isso: não conhecendo o que o passarinho precisava, ele não conhecia o passarinho.

E chegou um dia em que o dono do passarinho, não agüentando mais aquela situação, resolveu aconchegar o passarinho em sua mão. Talvez fosse isso, talvez o passarinho precisasse de mais carinho.

Mas não era disso que o passarinho precisava. E, quando seu dono tentou lhe afagar delicadamente com as mãos, o passarinho se tornou agitado e arredio, e se sacudiu e se movimentou violentamente. Fora de si, o passarinho saiu batendo nas barras da gaiola, bicou o dono, se chocou nos poleiros, perdeu penas nas pedras, machucou o bico na porteirinha.

O passarinho achou a porteirinha. Saiu todo machucado, sem lembrar como se vôa, com muitas penas a menos, com o bico dolorido, mas achou a porteirinha.

Atrás de si, o passarinho deixou a dor de um dono que nada entendeu. Não entendeu a tristeza do passarinho dentro de uma gaiola tão linda. Não entendeu o passarinho não aceitar seu carinho. Não entendeu o passarinho lhe bicar. Não entendeu o passarinho escolher ir embora.

Seria preciso ele conhecer realmente o passarinho para entender tudo isso.

Pousado numa árvore, já muito longe do dono e de sua gaiola perfeita, o passarinho era só dores. Estava muito machucado.

Olhou bem para a árvore em que tinha pousado e viu nela um buraquinho no tronco. Entrou lá e lá ficou por um bom tempo. Dormindo o sono mais longo que já dormira.

E foi quando passou o muito tempo que se passaria.

Um dia, não mais belo que os demais, o passarinho acordou decidido a reaprender a voar. Tirando algumas, que nunca mais cresceriam, a maioria de suas penas havia crescido de novo. O bico tinha uma cicatriz, mas essa já não mais doía.

O passarinho então olhou a sua volta. Sentiu-se dono de si. Os limites que tinha pela frente agora, seriam os limites que ele mesmo se daria.

E o passarinho vôou muito. E o passarinho vôou sempre. E o passarinho era feliz.

Vez por outra, em um momento ruim, o passarinho lembrava da linda gaiola e do bondoso dono que havia deixado tão longe.

E o que ele sentia não eram bem saudades.

O que ele sentia era um pesar, por não poder ter sua liberdade e seu dono juntos em uma mesma escolha.

Se apenas o dono soubesse... pensava o passarinho nesses momentos.




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imagem retirada daqui


3 comments:

Bee of Jupiter said...

Eu achei os dois posts ( esse e o do dia 24) muito semelhantes. Complementares. Lindos, Laninha.

Anonymous said...

delicadeza.

lindo, lindo! :)

Anonymous said...

Bonjorno, redenavaranda.blogspot.com!
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