Monday, September 25, 2006
[facilidades]
Ninguém sabe mais o que é andar de cavalo. As crianças de hoje, salvas as raras que pagam pouco dinheiro a dois burricos que marcham tristes em um sol escaldante de praia, não sabem do ritmo de andar em um trote de cavalo. Não sabem o que é ter o vento batendo nos cabelos e se sentir movendo em uma marcha ligeira e em um ritmo que pata humana alguma conseguiria. Ao invés disso, 4X4. Caminhonetas da classe de verde no bolso que vencem qualquer terreno com um dvd dentro de si. Ar-condiocionado, mini-bar, surround-sound. Não, it doesn't get any better than that! Mas ficará, ficará ainda melhor, tenho certeza. Os anos se passarão e outras coisas incríveis serão inventadas, outras coisas sobre as quais nos perguntaremos: como é que se vivia sem isso?
Isso tudo é muito bom. E não tem um "mas..." vindo depois dessa frase não. É tudo muito bom sim. São tempos diferentes, esses. E a cada tempo o que é de cada tempo.
Se as crianças de hoje não sabem o que é se sentir um gigante em cima do cavalgar gostoso de um cavalo e da adrenalina emocionante de um trote em disparada, as crianças de ontem também não sabiam da maravilha que é uma tv projetada, um dvd que faz tudo, que toca tudo, séries que podem ser de cada um, mil vídeo-games em um só computador, músicas em formatos compactados e que são trocadas aos milhares, existir no mundo virtual mesmo que mal se exista no mundo real.
São tempos em que a saúde é foco. E que não preciso me privar de tanto já que até a margarina agora tem versão light: que não só não é nociva, mas que faz bem ao coração.
E se hoje me der na telha ter um filho, não precisa de muita complicação não: o dinheiro certo e lá estou eu com a semente plantada e crescendo, tudo feitinho em um procedimento banal já.
Se meu livro da biblioteca já venceu, sem problemas, dois cliques e dois links e já o renovo. Só terei que me preocupar com isso de novo em 23 dias.
Entrada para o cinema sem pegar fila? Ora pois não! Compre seu ingresso online!
Sorvete no corpo que não quer engordar? Temos todos os sabores a sua disposição com 0% de gordura.
Refrigerante que daqui a pouco vai ser seu preferido?
Coca Light e Sprite Zero.
É viciante sim.
É bom sim.
Vestibular injusto que foi responsável durante tanto tempo pela depressão e até suicídio de tantos jovens: não se preocupe: uma faculdade em cada esquina resolve esse problema. Basta ter dinheiro para a mensalidade.
Computador ligado na impressora, com porta usb para o pen drive, para a câmera digital, com saída para o seu som, placa de vídeo, microfone e câmera: tudo essencial e indispensável.
Fazer curso de datilografia com as freiras? Digitar é respirar. Faz parte do dia a dia. Não há quem não saiba.
O tempo... bem... está aí uma coisinha para a qual ainda não conseguimos uma solução.
Vai embora rapidinho, ele.
No Japão foi lançada uma campanha anti-stress onde os empresários diminuíram a jornada de trabalho para que os pais e mães de família tivessem mais tempo para seus filhos e cônjuges. O que esses japoneses fizeram? Arranjaram um segundo trabalho para o tempo que havia sido lhes dado. As empresas tiveram que voltar atrás.
Não há como lembrar da frase do meu querido Seinfeld: "in life, it seems, wherever I am, I have to go.
Nós temos todos que ir sempre, sim. Mais que isso: temos que estar indo. Temos que estar em um tráfego imaginário bem real. Em movimento.
Encaixamos todos nossas agendas: aula, depois trabalho, depois almoço, dá tempo para passar acolá e pagar aquela conta, depois mais trabalho, depois pegar filho na escola, deixar no inglês e, enquanto isso, ir fazer aquela feira, voltar para casa, preparar jantar: acho que amanhã se acordar tal hora dá para ver aquele filme, fazer aquela caminhada, conversar com fulano.
Em qual outro tempo na história se faz sentido ter super-mercados 24 hrs?
Em qual outro tempo na história se tem um portal eternamente aberto para que se colher informações, para se comunicar, para interagir, para comprar?
Com certeza esse é um momento único na história da humanidade.
As conseqüências disso, ora, todos nós sabemos.
Não é o assunto deste texto o fato dos excessos desse tempo ter posto no Planeta um atestado de morte com data marcada.
Hoje, há que se sobreviver, mas mais que isso: há que se ser original, diferencial é a palavra, a chave do sucesso.
Em que outro tempo pessoalidade seria sinônimo de diferencial e não de natural?
São muitas as regras sociais de hoje.
Como assim você não tem Orkut?
Você não viu o vídeo da Cicarelli????
Email, não, todo mundo tem email.
Celular: dá licença: hellooo!!
Vivemos em um mundo de links.
E ai de quem não os tiver: será fadado ao vácuo social aonde não há justificativa mais justificável: se tivesse celular, email, orkut, isso não teria acontecido.
E não há lições de moral neste texto.
Se no fim dele você está esperando um: e é por isso que antigamente as pessoas eram felizes e hoje não são, você não vai encontrar.
Não aqui.
Eu sei lá porque as pessoas não são felizes???
Se pode tudo hoje: se ganha dinheiro, pode se comunicar com qualquer um a qualquer hora, se quero comer mas não quero engordar há cada vez mais um mundo de coisas cujo sabor está cada vez mais próximo dos real things, posso trabalhar deitada na minha cama com meu notebook, baixo minhas músicas e meus filmes preferidos de graça, coloco o peito que sempre quis, tiro a barriga que nunca quis, paro de usar os óculos que nunca gostei, programo minha televisão com o que eu quiser, leio o que quero quando quero, posso ser gay, posso ser metro, posso ser emo até! Posso não ter religião e ainda ser respeitado em minha espiritualidade. Posso comer só orgânicos e não ser considerado cafona, mas sim legal. Posso ser vegetariano, posso ser carnívoro. Vou ao meu banco sem sair de casa, faço interurbano sem pagar interurbano, passo uma hora e meia gritando como bicho e chamo isso de ginástica, vejo palyboy no ônibus, ando no metrô escutando música, assisto filme no avião, vejo na hora se gostei da foto que tirei, gravo a música que compus, visto o que quero, tatuo o que quero, furo o que quero: e é tudo estilo.
Viver hoje é, mais que nunca, poder fazer escolhas.
Só acho que nenhum de nós imaginou que tantas facilidades não fariam lá a vida tão mais fácil.
Lembro-me da típica história da Seleções: a médica famosa que teve traumatismo craniano e agora tinha como pior desafio escolher um sanduíche num fast food da vida: de carne? de frango? com picles? com salada? com maionese? baguete? pão bola? tomate? ketchup? gergelim? com coca? com suco? com guaraná? com água? com sobremesa? cartão? cheque? dinheiro? tem troco?
E acaba que tantas vezes a gente pede a beleza do pão bola com um molho que faz o pão ficar ensopado, um ketchup que não deixa a gente sentir o gosto do frango e uma sobremesa que não coube na fome que não era tanta.
Vai entender: o tempo passa, o tempo voa, e tudo acaba na mesma coisa de sempre: somos nossas escolhas.
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1 comment:
primeiro recebi no email. aí, como de costumo diante de tudo que leio vindo de você, fiquei admirada.
não que a beleza do teu texto seja surpresa, nunca é. mas é que sempre me cutuca. eu adoro.
maravilhosa, você. jesus!
ô orgulho.
e detalhe: não me rendo aos ipods! hunf!
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